“Baba Yaga tinha um único dente.” – Assim começa o livro da
história que a pequena Ana esta noite escolheu para que eu lhe contasse, já na
caminha.
Aquilo que um pai deseja, acima de tudo, é que o livro, a
história, o conto a ler nesta altura do dia, seja numa onda calma, pacífica,
harmoniosa, para que seja o primeiro embalo duma noite serena e de um sono
tranquilo.
O livro chama-se precisamente “Baba Yaga”, de Tai-Marc Le
thanh e Rebecca Dautremer, e reza a
história de uma menina só de um dente que, por precisamente ter só esse dente e
por ser gozada pelos outros miúdos, se foi tornando cada vez mais malvada.
Ainda na primeira página pode-se ler : “Apesar de tudo, ela
queria parecer-se com as outras crianças e aprendeu a assobiar, mentir, arrotar
e sobretudo, mastigar com um só dente. Para treinar, ela começou por comer o
ser cão, Auau Yaga (…) não gostava de animais (a não ser em guisado).”
Estavam lançados para uma história, no mínimo, estranha, mas
de nada me valia recuar, até porque a Ana estava atentamente vidrada a ouvir e
aquilo, depois da miúda comer o cão, só podia (achava eu) melhorar.
Viro a página…
“Baba Yaga sentia-se muito só. Como só tinha um dente, ao
contrário das outras crianças, resolveu comer algumas. Achou-as bem mais
saborosas e decidiu tornar-se ogresa…”
Neste momento, engoli em seco e pensei, por milésimos de
segundo, que aquilo que saiu da minha boca não podia ser aquilo que eu percebi…
Mas na verdade era. A Baba Yaga comia crianças que nem
ginjas, adorava o seu sabor, mastigava-as dolorosamente devido a ser “unidente”…
Foi então escorraçada para viver isolada na floresta, mantendo apenas contacto
com a sua mana, a Caca Yaga. (neste momento eu e a Ana esboçamos um tímido
sorriso, porque no meio daquele mix de Shreck com Dexter e Hannibal Lecter,
descobrimos que a canibal tinha uma irmã Caca, tal como é tratada a pequena
Francisca, cá em casa) …
A narrativa acrescenta que “Baba Yaga continuava a comer
crianças: tartes de garotos, assados de miúdos com conserva de limão, chouriços
de petizes com azeitonas, tirinhas de toucinho com criancinhas…” Até abriu um
restaurante, “Cantinho de Petizes”, onde nenhum cliente foi, vai-se lá saber
porquê, o que pelos vistos, tornou a “cordial” ogresa ainda mais malvada.
A irmã da ogresa (Caca Yaga) mudou o nome para Madalena (
não me perguntem em que é que esta informação enriquece a história, porque não faço
ideia…), casou e “ganhou” uma enteada de nome Migalhinha.
Como a Madalena “gostava imenso” da enteada, mandou que
Migalhinha fosse a casa da sua irmã na floresta. Entretanto a miúda, pelo
caminho, é avisada por um sapo falante que a tia a vai triturar só com um
dente. A miúda fica renitente, apesar do “fio de baba a escorrer pelo queixo da
velha” quando a viu à sua porta, até ver o banho quente de imersão que a tia
preparou para ela, com nabos e legumes a boiar, qual belo guisado de miúdos…
A tal Migalhinha lá se consegue escapar da casa da terrível e comilona tia, corre em pânico, sempre com a malvada da tia quase a alcança-la, mas
lá se safa e acaba por chegar a casa, conta ao pai que, enraivecido, expulsa a
madrasta de sua casa, iniciando-se provavelmente mais um processo
complicadíssimo de divórcio.
Para concluir a história, a ogresa voltou para casa furiosa
e conclui-se: “Baba Yaga continua com fome.”
Sinceramente, não sei se esta última frase pretende criar
alguma empatia entre o leitor e a ogresa, dando a imagem duma criatura terrível
todo o livro, mas que no fundo, era um ser-humano (ou mais ou menos) e que
tinha fominha e que de fome ninguém deve padecer…
Por mim, que o raio da ogresa morra de fome, chiça!
A história terminou e temi pelas perguntas, por vezes
estranhas, da Ana, mas desta vez, talvez por estar perdida de sono, deixou
escapar apenas um “Esta era um bocadinho mazinha, não era, pai?”
“Era, filha. Tinha dias, mas no fundo ela gostava muito de
crianças. E isso é que era importante…”
Tal livro pode ser lido a crianças com 3 ou 4 anos que não
têm o alcance e a capacidade de absorver a gravidade do que se possa ler, mas
contar esta mesma história a miúdos de 6 ou 10 anos, pode ser problemático…
Confesso que mesmo eu, já adulto, não prometo que não vá
sonhar com uma tipa gorda, feia como tudo, mal vestida, a correr atrás de mim
pela floresta, para me espetar o único dente que tem, no seu escuro e assustador
sorriso…
A editora do livro é a Editora Educação Nacional. Não
conheço, mas desaconselho este livro a menores e a pessoas mais sensíveis.
PS1- Quando escrevi este post, ontem à noite, já todas
dormiam lá em casa e fui-me perguntando enquanto teclava “Mas quem, no seu
perfeito juízo, compra um livro destes, que faz o Carpenter um escritor simpático?”
Descubro hoje, ao mostrar o texto à minha melhor crítica, na habitual
pré-leitura, que , devido às magnificas ilustrações do livro, fomos mesmo nós,
os pais, que o compramos.
Então, o meu humilde conselho é: que as ilustrações não
sejam o único ou mais importante critério na compra dum livro infantil; há que
dar uma rápida vista de olhos….
PS2- Ao fazer uma pequena pesquisa "googlar" sobre esta criatura, apercebi-me que, afinal estamos perante um sucesso eslavo, uma personagem mitológica, em relativa escala, o que atesta alguma cultura geral à compra deste livro (ou não?)...pelos vistos, andamos distraidos e fomos iludidos com tais belas ilustrações...